OPORTUNIDADE

Crachá tira invisibilidade e corta ciclo de pobreza

Contratação de pessoas em situação de vulnerabilidade gera oportunidades para mudança de vida

 

Da vulnerabilidade, a força que reconduz. O crachá de papel envolto em plástico foi como o primeiro sinal de reconhecimento para quem por anos acostumou a se sentir como “alguém invisível”. O documento de identificação era utilizado pela auxiliar Kátia Regina dos Santos, de 39 anos, enquanto frequentava as aulas do programa Estamos Juntos — iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte que busca garantir a inclusão produtiva da população em situação de rua. Ela dividia a sua rotina entre o curso e a vida em um dos abrigos, onde reside com o seu filho. “Quando chegava para a aula e colocava o crachá, me sentia alguém. As pessoas sabiam o meu nome, quem eu era e o que eu fazia. Algo que não era comum na minha vida”, lembra.

Oito meses após o primeiro dia de aula, os desejos se transformaram: aram da necessidade do reconhecimento para a vontade reconstruir a vida. A capacitação foi o primeiro o, e permitiu que Kátia se reinserisse no mercado de trabalho, onde atua como auxiliar de apoio ao educando na rede municipal de ensino da capital. Com um emprego e uma renda, os planos agora am pela ambição de ter um endereço, um lugar para chamar de lar. “Encontrei um lote e já estou finalizando os documentos para poder comprar. Tenho certeza que muito em breve vou colocar os primeiros tijolos para construir minha casinha, onde vou poder morar com o meu filho. Um lugar nosso”, diz.

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Kátia é uma das 1.805 pessoas que aram pelo programa Estamos Juntos, que teve início em 2019. A iniciativa é voltada para a população em situação de rua da capital, atualmente em 5.344 pessoas, conforme dados do Censo Pop Rua de 2022, realizado pelo executivo municipal em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Do total de alunos capacitados pelo programa, 1.249 foram encaminhadas para as frentes de trabalho da prefeitura, sendo que 159 permanecem ativos na iniciativa. Outras 110 trabalham em outros locais.

“No último estudo que fizemos, muitas pessoas afirmaram que deixariam as ruas se tivessem uma oportunidade de trabalho e se conseguissem se manter financeiramente. Então, o que o programa busca é dar esse e, até por causa do nosso objetivo enquanto cidade que é diminuir a quantidade de pessoas em situação de rua”, afirma.

O alto índice de pessoas em situação de vulnerabilidade é um problema que tem sido enfrentado não apenas pelo poder público. Empresas que têm programas de diversidade também têm feito a diferença. A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) traçou como meta que 30% dos candidatos à posição de liderança pertençam aos grupos minorizados até 2026. Como estratégia para que se possa alcançar esse objetivo, a empresa desenvolve, desde 2020, o programa de aprendizagem de eletricistas, com percentual de vagas dedicado para mulheres, filhos e filhas de pessoas que estiveram em situação de rua e pessoas imigrantes. Cerca de 800 jovens foram qualificados nesta iniciativa.

“O programa pretende contribuir para a interrupção do ciclo de vulnerabilização que acompanha esses jovens e suas famílias há tempos, possibilitando o o ao mercado de trabalho e às condições mais dignas de trabalho”, afirma a gerente de provimento e desenvolvimento da Cemig, Anne Santana. Os estudantes que concluem o curso podem ser itidos pela Cemig, se aprovados no concurso, ou pelas empresas que prestam serviço para a companhia. “Isso possibilita o rompimento do ciclo de pobreza geracional de uma família, apresentando possibilidades e horizontes considerados iníveis por essas pessoas até então”, acrescenta.

A eletricista Izabela Coimbra, de 21 anos, é uma das jovens contempladas pelo programa. Mulher negra, bissexual, criada pela avó, que trabalha como catadora de recicláveis em BH, ela encontrou na iniciativa uma chance de desenvolver uma carreira. “Minha avó sempre falou para não perder essas oportunidades para não precisar ar pelas mesmas situações de humilhação que ela já enfrentou. E eu não tinha ideia sobre o que fazer depois que saí da escola. Esse curso foi um caminho para a minha vida e a chance de dar uma melhor condição para a minha família”, relata.

Em dezembro de 2023, ela concluiu o curso e se tornou uma das 13 participantes do programa que foram contratadas pela companhia. “Todo o e psicológico e das aulas de reforço, que tivemos junto a Pastoral de Rua, fizeram a diferença”, afirma. Agora, ela já realiza sonhos. “Minha mãe (avó) sempre sonhou em ter uma festa de aniversário, e eu consegui dar isso pra ela com meu trabalho. Agora consigo ajudar também nas despesas de casa. Parecem coisas simples, mas isso representa muito para mim”, afirma.

Reparação: negra, bissexual e com poucos os, Izabela comemora emprego - Fred Magno / O TEMPO

Sem prioridade: fim da desigualdade nem sempre é foco

As iniciativas ligadas à solidariedade e ao combate das desigualdades sociais estão entre as frentes menos priorizadas entre as empresas com políticas de diversidade implantadas. Também são pouco pensadas as ações voltadas para a diversidade religiosa, além de territorialidade e classe social, segundo levantamento da consultoria Travessia.

O estudo considerou que a centralização das iniciativas em poucas frentes pode criar programas de DEI com impacto limitado. “Não se trata de dizer que a inclusão é seletiva por intenção, mas sim de reconhecer que o modelo atual favorece quem já teve algum o a estruturas de formação e mobilidade. Por isso, é fundamental ampliar o olhar e investir em ações que enfrentem desigualdades mais profundas, sem deixar ninguém de fora. A inclusão verdadeira é aquela que chega a todos, especialmente aos que historicamente ficaram à margem”, avalia a sócia-fundadora da consultoria, Mariana Deperon.

A especialista em gestão Tatiana Santarelli reforça que a contratação e retenção de pessoas pertencentes a grupos socialmente minorizados dependem da forma que elas são recebidas nas companhias. “Sem uma cultura de inclusão, você até pode atrair talentos diversos, mas não consegue retê-los. Eles vão embora, muitas vezes em silêncio, porque não sentem parte, não conseguem crescer. A retenção começa com a forma como as empresas escolhem cuidar das pessoas com escuta e ações que vão além do discurso”, diz.

Acolher não é filantropia, e sim uma estratégia

Para o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico de BH, Adriano Faria, mais do que um compromisso social, as empresas que se unem ao programa “Estamos Juntos” contratando pessoas em situação de rua se beneficiam também ao suprir a falta de mão de obra para determinados setores.

A coordenadora dos cursos de pós-graduação em Diversidade e Inclusão da PUC Minas, Letícia Alves Lins, lembra que essas ações é que vão possibilitar que as empresas cumpram com as metas criadas no âmbito da agenda 2030 da ONU, como tentativa de um mundo mais sustentável. Várias corporações são signatárias da agenda. “As ações surgem do próprio capitalismo pressionando por isso, por meio de investidores”, diz.